sábado, 9 de janeiro de 2010

FICÇÃO DÁ VIDA REAL (conto)

Eu não quero ler, Tatiana. Escreve aí que eu não quero ler.

Ele não quer ler.

Tatiana, minha flor, não é ele, sou eu, escreva. Ele, que sou eu, não quer ler.

Ahn?

Não entendeu?

Ah, sim. Ele, digo, eu, pede para dizer que não quer ler.

Está tudo errado, errado, Tatiana, minha filha. Como você conseguiu se formar?

Ora, eu...

Ora, nada, orar demais dar cãibra. Veja o caso da sua mãe.

Veja lá como fala da minha santa mãe.

Tudo bem, desculpe, não quis te ofender, mas escreva do jeito que estou dizendo: eu não quero ler.

Ela digita: eu - ele - não quero ler. E clica em ‘enviar mensagem’.

Deixe-me ver, como assim, ele, Tatiana, esse ele sou eu. Quer dizer, é pra pessoa que está lendo a mensagem saber que sou eu que estou escrevendo. Você estraga tudo. Vamos, não chore, agora. Tatiana, pára, que escândalo. Isso é bobagem meu amor, pára já com isso. Deixa isso pra lá, desliga esse computador que estou cansado. Não vou mais responder mensagem de seu ninguém, muito menos daquele pretensioso do Alencar que acha que escreve só porque tem um sobrenome bonito e passa o dia escrevendo e digitando. Esse nome nem é dele, é falso. E digo mais, não vou mais assinar a resenha que prometi, muito menos o prefácio daquela porcaria. Que ele se vire com o pessoal da editora.

Alencar encontra-se com Tatiana, que tenta lhe confessar o teor da conversa acima, dela com o marido, jornalista, resenhista e ghost writer nas horas vagas. Alencar fuma um charuto e esconde a barriga com o travesseiro. Olha para os lábios avermelhados de batom de Tatiana, que se olha no espelho à procura de fiapos desgrenhados de sobrancelha para puxar com a pinça.

Sou louca por ti, Alencar, mas não dá, eu vou ter que ficar com ele ainda por alguns meses.

Quando, quero um quando?

Não sei.

Escuto a tua historinha há quase dois anos. Nada de quando, de data, de nada. Antes quando você queria casar, vir morar aqui, eu dizia: calma deixa tudo acalmar, deixa o meu divórcio sair, deixa a maré baixar que as coisas se ajeitam e você vem ficar comigo. Pra sempre, lembra?

Hum-hum.

Isso quer dizer sim ou não?

Sim, eu lembro.

Tatiana veste-se, põe as lentes de contato, sobe o zíper da saia e apalpa a barriga.

Já vou.

Como assim já vai?

Tenho que ir. Tô ficando gorda.

E o que uma coisa tem a ver com a outra, Tatiana?

Nada, se eu tiver grávida eu te mato.

Deve ser do teu marido.

Palhaço.

E bate a porta.

O livro é um fiasco. Uma vergonha literária, rabiscos de palavras inúteis que não servem nem para matar fome de traça. (Trecho da tal resenha do marido de Tatiana para o livro de Alencar).


Cena inicial. Mesa de bar. Noite. Perto das dez. Dois copos de chope. Dois anos antes. Sentado com um cigarro na mão, Alencar, aspirante a escritor. Encostado com a cabeça na parede, também sentado, marido de Tatiana, jornalista.

(Jornalista)

Estou de férias, Alencar, você é muito meu amigo, mas não dá. Parei com tudo. Vou me aposentar ano que vem, ou daqui a dois anos, no máximo.

(O aspirante a escritor)

Se você não me ajudar, como vou sair dessa? A mulher me deixou sem grana, levou o carro, hipotecou o apartamento e me deixou as dívidas todas, depois disse que só me dá o divorcio se eu lhe pagar uma viagem pro Chile.

(Jornalista)

Azar o seu. Como aceita ainda as sandices da tua mulher? Interna ela, meu irmão. Ou manda a pivetada meter uma surra, virou moda hoje. Garçom, mais uma costelinha e um chope. Quer outro, Alencar?

(O aspirante)

Não, eu quero que você me ajude, com a bendita da mulher eu me entendo. Preciso de seus contatos, de seus conhecimentos. Vai me ajudar com o livro ou não?

(Jornalista)

Pra começar, você não é escritor de nada. Mandar textozinhos, essas merdículas escrevinhadas pra moçada que se diz tua amiga, pras amantes e namoradas achando que abafa é a pior das ciladas que existe.

(O aspirante)

Eu sei. Vou desistir de tudo. Bem que meu avô me disse: vai ser gente, vai trabalhar e ser doutor. Por que eu fui ser escrivão do governo?

(Jornalista)

Só pra ser concursado, pra ter estabilidade, pra pensar que ia pegar uma mamata, uma dinheirama solta das tetas do governo, achando que ia se dar bem, como todo bom ordinário da classe pobre metido a classe média. Você não passa de um medíocre.

(O aspirante)

Eu devia mesmo era ter terminado a faculdade na época que tive tempo. Veja só você aí com cara de bonachão. Escreve bem, escreve pra duas revistas, uma coluna por semana, vive viajando, deve comer mulher adoidado e bebendo num bar de quinta comigo.

(Jornalista)

Viajar é bom. Mulher quase não como nenhuma diferente, só a Safira, uma das estagiárias do jornal. O dinheiro é razoável, dá pra sair vivo. É, estou bem, quem se fodeu foi você, não devia mesmo ter largado a faculdade. Mas não devo falar sobre isso, você nunca quis falar sobre isso.

(O aspirante)

Eu tinha mulher e filho.

(Jornalista)

A velha desculpinha de sempre. Tu já se olhou no espelho, cara, seja realista? Já? Mas se olhou bem, com calma? Olha os teus cabelos brancos, olha as rugas, olha a miséria na tua cara.

(O aspirante)

Você é inspirador. Garçom, a conta.

(Jornalista)

Deixa que eu pago.

O aspirante levanta com um suspiro. O jornalista dá uma baforada com o cigarro. Cinzas no chão. Baratas passeando no lodo da parede da espelunca. Barulho de carros passando e buzinas.

(Jornalista)

Ei, cara, vou te fazer um favor antes de você se matar, até parece que vai morrer. Me entrega os teus originais para o livro na minha casa amanhã. Ainda sabe onde é, não é? Cedo. Se eu tiver dormindo, entrega pra minha empregada.

O aspirante toma um último gole do chope e sai para a rua.

Dois anos depois. Casa do jornalista. Sala de estar. Tatiana faz tranças nos cabelos sentada em uma poltrona. Alencar coça a nuca olhando para os quadros da parede, sentado em uma cadeira de madeira. Silêncio. Tic tac do relógio, plim plim da torneira do banheiro e flap flap flap do ventilador de teto.

Você lembra, foi aqui que a gente se conheceu? Quando eu vim deixar os originais do livro. Você tinha a mesma cara de hoje, mas era menos esnobe, menos mesquinha, mais minha do que nunca.

Deixa de conversa. Você esqueceu que ele pode estar ouvindo ou gravando tudo? Esqueceu que ele desconfia de você?

Você vestida de empregada estava linda. Suada, de touca na cabeça.

Era um estudo para o teatro. Estava varrendo, passando, lavando casa duas vezes por semana, apenas pra sentir o cansaço de uma diarista.

E agora que papel você está estudando?

Ainda não sei se de uma adolescente pirada, drogada, meio porra louca, burrinha, deixada pelos pais e criada pelos avós, ou de uma mulher imatura, metida com dois salafrários.

Êpa, isso aí é vida real.

Acontece às vezes da gente confundir realidade e ficção quando se busca inspiração.

Eu te inspiro alguma coisa?

Safadeza, tagarelice e perdição.

Adorei. Perdição. Você combina com tudo isso também. Te amo, não esquece nunca.

Além de péssimo escritor, péssimo amante e péssimo romântico. Tu és um imprestável. Não te dou uma surra porque hoje só gasto energia com a comemoração de minha aposentadoria. O marido de Tatiana adentra o recinto com sua voz grave de alto-falante. Os dois nem se mexem, ficam se entreolhando como que em combinação.

Vamos, Tatiana, já ajeitou o cabelo?

Já, papi.

Vamos, te manda daqui, Alencar. Já mandei teu prefácio e a resenha pra editora e pro jornal. Isso pra você não querer se matar de novo. E não insista mais em ser coisa alguma que você não pode ser nem imitar.

Depois da leitura da resenha, o aspirante a escritor senta-se de frente à tela de seu computador e digita:

Conto.

Personagem 1: Tatiana, mulher do jornalista

Personagem 2: Alencar, aspirante a escritor.

Personagem 3: O jornalista.

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