terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O COMEÇO DOS TEMPOS DO SEM FIM










Em algum lugar ela deve domar meus mundos caleidoscópios na ampulheta em penúria. Não, em algum lugar ela deve vestir-se de mim em imponderáveis detalhes que eu mesmo esqueço. De algum lugar ela virá sem meios termos ou meias-vidas. Não. Ela deve lembrar de alguma coisa em mim que falamos sem delongas, perdida e transida no silêncio e nas tranças de seus cabelos úmidos, deixará eu repousar e dirá que possamos nos esquecer. Não, não, em algum lugar perdido e sem mapa dessa cidade louca, ela deve escrever coisas e rotas para que eu siga a fim de me encontrar em meu deserto. Não, ela se lembra de mim no espelho enquanto tomo banho e retiro de seu corpo alguma suave memória dos dias que teremos. Ela sorri e assim vagamos em meio aos seus lancinantes sorrisos. Ela devora meus textos da gaveta e pede para escrevê-los. Quer viajar. E viaja em mim. Só assim somos um e, dela, perco-me na tentativa de ser. De ser um objeto sem averiguação. Ela pede para viajar. Não, amor, não tenho passaporte, nem tostão nenhum que lhe compre a alegria ou as fugas. Ela me pede perdão por eu ser tão assim, assim, levemente, sugando meus gestos em olhares dispersos. No quadro, ela respira nossa existência e me dá uma trégua em meu mundo, quando levito amparado pelo seu. Ela gravita e engravida. Seus sonhos são tão amplos e esquisitos, que caibo neles. Prepara o jantar, toma uma ducha fria. Toma a mão suja de meios, sem anseios e ternura. Apenas toma a mão e a leva em seu patético desejo de se transformar em coisa que eu permita desejar. Ela diz que se apaixona por falta de ternura calculada. Ela me pede mais um pouco de maus-tratos e rimos dessa piada, sadicamente. Os dentes me mordem do céu sem boca ao estômago sem vulcões. Ela, perdida na cidade de meus encantos idílicos e me encontra em uma idiossincrasia que soletra à meia-noite. Ah, você sabe escrever, então, leia-me. Não, não, assim, ela me poupa de ser mais um e silente me destrincha e me revolve ao ser humano metido a ser humano que não se mete a nada, e me mata de feliz concórdia por saber demais e entender. Toca meus cabelos. Toca meus ombros e levanta o mundo que não mais se sustenta em palavras ou pilhas de máscaras. Então, aí, dentro, no grito, na saliva, na gota de suor deslizando, ela me atrai e resolve seguir seu destino. Tomamos o vinho, ela sorri me embriagando. A trança se desfez e milhões de cores e trajetos se acendem. Diante dos cacos e rompidos exércitos sem nenhuma ordem me evita. E sei que ela me salva, e ela me salvará, já que realmente não posso fazê-lo. Ouça a cantiga, a dissonância, as horas passando, os olhos cerrando sem premência do acordar. E dormimos juntos como ostras na praia, e como pérola, resolvo ter algum valor para sua análise desmedida e descompromissada. Ela sabe. Ela resiste. Ela levita e gravita, grávida de todo o entendimento. Ela se fecha, e nas ostras reproduzimos nossa fome de ser gente. Para que, ela pergunta abrindo bocas, volumes e montes. Subimos, subimos, desaparecemos, resvalando. Vamos viajar, implora, grunhindo. Ela pede mais uma vez, e suas lágrimas são as mesmas que um dia quis derramar. Não, ela pede que eu enxugue meu corpo e que vamos nos mudar. Seu inquilino sorrateiro e pela metade, ela me suga. Hoje, acordei de sonhos atrevidos e minha insanidade não me dá conta. Corre, corremos, sem correias ou urgências, apenas espasmos agudos e sem brandir bandeiras, lemas ou interesses contratuais. Há quanto tempo, em quantos detalhes, em quantas insônias, ressacas e sedes estamos aqui. E sumimos um do outro para nos querermos, desejarmos, sumirmos de novo e em vão nos gritamos ante o mundo que nos ignora. Mais a mim que a ela, que dá sentido a tudo. Entre o abissal desencontro e metas inatingíveis, me dá asas e socorre quando do salto em precipícios bem elaborados. Sucumbindo vamos derretendo dentro dos corpos. Mastigo-a com gana, coma avidez, como a última e prima coisa. E ela renasce com braços, pernas, ancas, olhos, boca, fios de cabelos esquecidos pelo chão que se expande. Ontem, não acordaríamos cedo mesmo, amor, então, vamos viajar. Ela pede, não, ela roga aos meus deuses. Há mais anjos caídos em mim do que imagina. Eu sei, por isso vim te exorcizar de mim. Seremos o original pecado, a lei. Um novo mundo redescoberto e nunca escondido entre transações e desvario. Teu mundo, meu mundo. Vamos viajar, amor, dê-me a mão. Teu passaporte, meu corpo, nosso corpo, nossa fusão, nossa volátil esperança de milionésimos de segundos e amparados pelo vento dos anos-luz que nos imploram por um retorno não-eterno. Vem, amor, dissipa, destrói, inventa, nasce em mim. Grávidos e gestando sem mais nenhuma dúvida, fugimos da cidade, do início, do fim, dos meios e dos sentidos. Em algum lugar, ela me reitera de que tudo isso não passa de mais coisas para serem metidas em gavetas, espúrias criaturas de um bizarro mundo quadrado. Circulamos, desabamos, num big bang explodindo entre dínamos, sem força, sem fogo, sem água, sem metafísica. Só aqui, bem aqui, aqui mesmo, nesse mesmo lugar, onde ela me deixa e me vem, onde o pacto se refaz. Aqui, onde ela me escreve em algum lugar onde ela possa repousar e dizer somente que tudo descerá novamente pela ampulheta. Como grão voltando e intempestivamente ecoando desertos juntos, mãos e não mais palavras. Como era aqui antes de mim, ela indaga sem me exibir vozes. Apenas eu, respondo com sua boca e dormimos o sono de seus olhos. Letra por letra vai se repetindo, reconstruindo, dizendo, sendo. Ela, diz. Tu, digo. Em algum lugar, nós fazemos a vitória e a história do mundo apenas habitado por nós. Em algum lugar.

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